Quando as Fachadas Falam: a Memória que se Apaga em Teresina
Entre rachaduras e repinturas, as fachadas contam histórias que a cidade insiste em esquecer.
Entre rachaduras e repinturas, as fachadas contam histórias que a cidade insiste em esquecer.
Antiga Casa da Cultura - Teresina Piauí.
E em tudo ficou um pouco de tudo.
No copo ficou um pouco de beijo.
No quadro — um pouco de paisagem.
No caderno ficou um pouco de linha escrita.
Na roupa, um pouco de mancha.
Em tudo ficou um pouco de tudo.
Do que fui, ficou um pouco.
Mas o que ficou, ficou calado esperando.
Resíduo - Carlos Drummond de Andrade
Quando Drummond fala do pouco que ficou e que em tudo ficou um pouco de tudo, me pergunto o que tem ficado e resistido sobre a história dos que passaram por aqui. E mais do que refletir sobre os que passaram, me pergunto sobre a responsabilidade dos que ficaram.
Semana passada, após refletir que não pratico turismo suficiente na minha própria cidade, decidi visitar as 3 igrejas mais antigas da nossa capital: Igreja de Nossa Senhora do Amparo; Igreja de São Benedito e a Catedral Metropolitana Nossa Senhora Das Dores. Fiz o dever de casa, estudei um pouco pra entender sobre a história por trás das construções, usei meu amigo Google pra conferir os horários. E em uma manhã de sábado, na qual segundo pesquisas as igrejas estariam abertas, me deparei com um cenário de portas fechadas e um evento particular (esse não teve o que ser questionado).
Sábado é dia de descanso para alguns, de fé para outros. Mas também pode ser dia de turismo. Para muita gente, é nesse intervalo entre a correria da semana e a pausa do domingo que se encontra tempo para olhar a cidade com outros olhos ou, ao menos, deveria.
Foi com essa intenção que saí de casa: ver Teresina como quem vê pela primeira vez. Redescobrir. Me conectar com a memória e trazer pro Finestra um novo olhar.
Mas me peguei pensando: quantas vezes viajei para ver o que é do outro, sem nunca ter visto o que é meu? Já caminhei horas por ruas de paralelepípedo em Ouro Preto, entrei em dezenas de igrejas, ouvi histórias de santos e arquiteturas barrocas como se fossem parte da minha história. E são. Mas… e a história daqui? O que eu conheço das nossas igrejas centenárias, dos símbolos que contam sobre o nascimento da cidade que habito?
Esse é o ponto. A gente se orgulha do que vê lá fora, mas nem sempre cuida ou se interessa pelo que temos aqui. Falta acesso, é verdade. Mas falta também esse senso de pertencimento. Essa vontade de olhar com afeto para o lugar onde estamos plantados.
Turistar em Teresina deveria ser tão encantador quanto turistar em qualquer cidade histórica. Mas para isso, a cidade precisa estar disponível. Aberta. Viva. E nós, moradores, precisamos querer vê-la. Precisamos enxergar valor nas memórias que estão diante de nós, antes que elas se apaguem de vez.
É nesse instante que podemos lembrar que no lamento doce e ácido de Torquato Neto, ele já escancarava o esquecimento local ao falar da "Triste Teresina"
E eu me pergunto — que cidade é essa que não reconhecemos?
Imagem: Exposição Nordeste Expandido: Estratégias de (re)xistir - SESC Cajuína.
Teresina tem uma pele feita de barro antigo, janelas de madeira, portas que desafiam o tempo. Suas ruas guardam silêncios entre frestas, muros rachados e ornamentos que já não brilham. Cada fachada guarda o traço de uma época e marcas de um passado que insiste em permanecer, mesmo quando ignorado.
Entre o silêncio das fachadas e os passos apressados da cidade, ainda há quem tente ouvir o que ainda sussurram as nossas paredes. As igrejas, erguidas com fé e esforço, parecem resistir em meio ao concreto novo, mas resistir caladas. O centro, permanece esquecido parecendo um anúncio de revista antiga, onde lemos aluga-se e vende-se em diferentes formatos, cores e tamanhos que mascaram as verdadeiras nuances que mereceriam nossa atenção. Como os versos de Drummond, tudo parecia conter um pouco de tudo — mas ninguém via.
Assim como sol de Teresina maltrata nossa pele, a cidade já apresenta patologias dermicas quase irrecuperáveis. Prédios icônicos com arquiteturas singulares são travestidos de estacionamentos, onde a parada não é motivo de contemplação.
Esses espaços, que deveriam ser vivos, abertos à contemplação e ao afeto coletivo, permanecem trancados, como se o tempo também tivesse perdido a chave da memória. Pelo mundo, há muitos mitos sobre cidades perdidas... Teresina parece fazer o impossível: criar um nicho onde existe uma cidade perdida dentro de outra.
Segundo Milton Santos, " o espaço é uma acumulação desigual de tempos". Ao passo que criamos prédios cada vez mais modernos e tecnológicos, transformamos memórias em pó. E na desigualdade de interesses, me pergunto: como cultivar pertencimento sem acesso à nossa história? Como despertar o interesse, o cuidado, a valorização, se nem mesmo podemos ver de perto o que nos constitui?
Em uma cidade que cresce e se transforma todos os dias, a memória precisa ter espaço. Precisa ser lembrada, visitada, cuidada. Porque quando as fachadas falam, elas não estão apenas nos contando o passado. Estão nos chamando à responsabilidade no presente.
O tempo não passa em vão. Ele pousa sobre os telhados, invade as estruturas, apaga pinturas. Mas mais que o tempo, pesa o abandono. O olhar que não vê, o projeto que não considera, a pressa de construir sem memória. Assim, pouco a pouco, os contornos da cidade vão se perdendo como fotos antigas deixadas ao sol.
Enquanto as fachadas silenciosas do centro escondem memórias que se apagam, há outras histórias pulsando à margem: em bairros como Poti Velho, onde a cidade começou a ser traçada com barro, água e resistência. Assim como o risco do esquecimento é elo de ligação entre o centro e a margem, a história desses dois espaços se conectam de outras formas: A cidade pode ser pensada a partir da sua ocupação na antiga Vila do Poti, mas a transferência da sede da Vila do Poti (hoje Poti Velho) para a Vila Nova do Poti deu-se em 20 de outubro de 1851, atualmente conhecida como Praça da Bandeira. Tendo como primeiro edifício construído a Igreja de Nossa Senhora do Amparo que é padroeira dos potienses.
É curioso como, muitas vezes, o que está fora do eixo ou longe dos roteiros oficiais guarda justamente a origem de tudo. Poti Velho não é só paisagem ribeirinha: é berço de ofício, de cultura, de construção coletiva. Ali, o fazer manual moldou as primeiras casas, os primeiros caminhos e, de algum modo, a própria identidade teresinense.
Às margens do rio Poti, na antiga vila de pescadores, por volta de 1970, o trabalho com a argila começou ser moldado pelas mãos de muitos artesãos. O tijolo era principal peça produzida. A partir dai, a argila passou a ser utilizada no artesanato das peças, e hoje apresenta uma infinidade de opções de produtos que podem ser protagonistas de diferentes espaços. Esse trabalho minucioso foi ganhando destaque, marcando o início do que hoje conhecemos como Polo Cerâmico do bairro Poti Velho.
Mas quem escuta essas histórias? Quem caminha por ali com olhos de visitante, com o cuidado de quem reconhece patrimônio no que é vivo e cotidiano?
Felizmente enxergamos tentativas importantes de valorização desse espaço: o Parque Vila Poti, inaugurado recentemente pela Secretaria de Turismo do Piauí (SETUR), tem como objetivo revitalizar o Polo e atrair mais turistas para esta região rica em cultura local. Além do reconhecimento dos gestores públicos, o artesanato local segue sendo peça fundamental nos projetos de muitos arquitetos piauienses , sendo uma prova de valorização da memória. Na madeira talhada, nos trançados manuais, nas cores e texturas que remetem ao território, a arquitetura e o design se tornam ferramentas de resistência, criando espaços que carregam identidade e pertencimento.
Neste cenário, entendemos que a relação pra preservação da memória deve ser recíproca: não basta apenas o olhar do gestor público. Mais do que preservar prédios antigos ou reconhecer nomes ilustres, valorizar o local é entender que nossa identidade também se constrói nos pequenos gestos, nos saberes transmitidos, nas expressões culturais que resistem ao tempo. É olhar para o que é nosso ( nossa arquitetura, nosso artesanato, nossas ruas e paisagens) e reconhecer valor ali, antes que o esquecimento tome conta. Sem valorização local, corremos o risco de perder não só a história, mas também a chance de projetar um futuro mais conectado com quem realmente somos. Nesse sentido, reforço que esse seja um lembrete pra mim e pra você: precisamos ocupar esses cenários.
Área do Parque Vila Poti/Foto: João Santana
Foto: Reprodução
Enquanto houver quem observe com cuidado, fotografe, estude e defenda, algo irá permanecer. A memória se reconstrói no olhar de quem reconhece valor no que parece ruína. E talvez, nesse gesto, a cidade se lembre de si.
Não são apenas paredes desgastadas ou fachadas desbotadas; são testemunhos do tempo, fragmentos de histórias que resistem à pressa e ao esquecimento. Cada marca, cada rachadura, cada sombra guardada conta uma narrativa que se perde se não houver alguém para ouvir.
Preservar não é apenas conservar o passado, mas permitir que ele dialogue com o presente e inspire o futuro. É nesse entrelace que a cidade respira, pulsa e se reinventa. A memória, assim, não é estática — é um processo vivo, contínuo, tecido pelo olhar sensível daqueles que não permitem que o passado se desvaneça no vento.
É aqui que os coletivos e associações ganham papel fundamental. São esses grupos, formados por pessoas que compartilham interesses, conhecimento e compromisso, que dão voz ao silêncio das ruas, que mobilizam para a defesa do patrimônio e para o fortalecimento da memória comunitária. Eles são guardiões e renovadores, costurando laços entre passado e presente, entre o local e o coletivo.
E talvez, na delicadeza desse olhar, a cidade reencontre sua alma, seu verdadeiro rosto, seu pulsar autêntico. Porque o que permanece não é só matéria, mas o afeto, a história, o vínculo que une pessoas e lugares numa teia invisível.
A cidade fala. Fala nas paredes descascadas, nas janelas entaipadas, nos mosaicos cobertos de tinta. Fala também no silêncio dos espaços esquecidos, na ausência de cuidado, na pressa de apagar para construir o novo.
Mas é na escuta que mora a resistência.
Talvez o maior gesto de preservação seja olhar de novo, com respeito, com afeto, com curiosidade. Não apenas o centro, mas as margens. Não apenas os monumentos, mas os detalhes. Não apenas a história contada, mas a vivida.
Se em tudo ficou um pouco de tudo, como disse Drummond, que ao menos o que ficou nos convoque a lembrar. E, principalmente, a cuidar.
Porque a cidade, como a memória, só resiste se houver quem permaneça atento.
E sobre o tempo que passa, como diria Gilberto Gil " tempo, tempo, tempo. Vou te fazer um pedido..." Que ele passe e a memória fique. E para os designers e arquitetos fica meu convite: "Ser possível reunirmo-nos, num outro nível de vínculo..." (sim, ainda estou parafraseado Gil) na direção de uma resistência coletiva afim de defender o que é nosso.