Decorar é mais do que harmonizar cores, escolher móveis ou seguir tendências. É construir um espaço que nos reconheça. Uma casa não se torna lar pelo tamanho ou estilo, mas pelo que ela carrega de afetividade, memória e identidade.
A chamada “decoração afetiva” tem ganhado força exatamente por isso: ela nos convida a abandonar o genérico e acolher o singular — aquilo que só faz sentido pra quem mora ali. Nas palavras de Lina Bo Bardi, “a beleza da arquitetura está na imperfeição da vida real”. E é nesse imperfeito, no improviso e na emoção, que a verdadeira casa acontece.
As cores nesse contexto não são apenas estéticas — são memórias cromáticas. Como dizia o designer francês Jean-Philippe Lenclos, cada cor carrega consigo “uma geografia afetiva”.
Arquitetos como Marcio Kogan, Marcelo Rosenbaum e Paola Ribeiro têm reforçado esse olhar sensível para os interiores, onde cada objeto, textura e tom contam uma parte da história dos moradores.
Nos últimos anos, é fácil perceber uma certa “pasteurização” na decoração de interiores. Nas buscas pelo Instagram ou Pinterest, vemos salas idênticas: paleta neutra, móveis retos, plantas estrategicamente posicionadas e um ar de showroom.
A estética clean girl, que surgiu nas redes sociais (especialmente no TikTok e Instagram), e tem ultrapassado o mundo da beleza e influenciado diretamente o design de interiores, trazendo o minimalismo e paleta de cores cada vez mais neutras e sóbrias para os ambientes. Quem nunca ouviu falar na frase " chique é ser clean" ? A verdade é que esse discurso vem mascarando o quanto a globalização ainda reforça um "american way off life" de como se vestir ou como decorar. Acredito que devemos nos perguntar como pensar o minimalismo em um país tão plural, diverso e naturalmente colorido como nosso ? O perigo de se perder a identidade cultural em termos de arquitetura e interiores, nos mostra como caminhamos para uma uniformidade arquitetônica global.
Ainda na seara do universo da influência da estética clean girl, entendemos que a moda e arquitetura andam de mãos dadas com uma relação recíproca de trocas e inspirações. Lembrando que não podemos deixar de destacar exemplos desse casamento feliz, a saber, a criação de Zaha Hadid para marca Melissa, que é um fruto icônico e atemporal que está presente no imaginário das pessoas até hoje.
Avaliar como a estética clean girl, enquanto expoente do mundo da moda, percebemos seu domínio que constatamos que ele atinge desde da criação do "outfit" do dia, até a escolha dos móveis do banheiro. Nesse sentido, enxergamos que essas influências refletem muito sobre como a estética, tanto física quanto arquitetônica, é ditada pelo hype do momento Considerando esse cenário, indico um vídeo que traz um olhar necessário e pertinente sobre a problemática da estética clean girl , que guarda e reforça raízes elitistas. A análise é da apresentadora e empresária Vanessa Rozan:
Em tempos de massificação dos gostos e repetição dos costumes para se adequar ao aesthetic do momento, fica a pergunta: onde foi parar a identidade das casas brasileiras?
Para o arquiteto e designer Maurício Arruda, essa tendência de uniformização está apagando a memória afetiva dos lares. Ele defende um caminho oposto: o maximalismo brasileiro. A estreia recente da sua marca, a MAU, traz consigo um manifesto que defende a pluralidade de culturas e influências que reforçam o tropicalismo tupiniquim:
Quando ouvimos a palavra "maximalismo", é comum pensar em exagero, excesso, caos. Mas na perspectiva de Arruda, o maximalismo é, na verdade, uma forma de dar espaço à história pessoal. É incluir objetos que contam quem somos, de onde viemos, o que amamos e como vivemos. É sobre misturar o vaso herdado da avó com o souvenir da viagem à praia, o móvel antigo com a poltrona de design contemporâneo. É sobre criar camadas de memória, cores, referências e afetos — tudo isso formando um espaço único e autêntico. Nas recentes feiras e mostras de arquitetura, percebemos que a decoração afetiva tem sido reforçada como uma espécie de remada contra maré de mesmices.
A busca por um feed harmonioso e por seguir as tendências mais populares acabou levando muita gente a decorar seus lares como se fossem vitrines. Mas a casa precisa ser mais do que bonita: ela precisa fazer sentido para quem vive ali. Segundo Maurício, a casa é um retrato íntimo do morador, e não um produto para ser replicado. Quando nos desconectamos da nossa cultura, das nossas memórias e dos objetos que nos representam, deixamos de fazer da casa um espaço de verdade. Parafraseando, Cora Carolina:
“Minha casa é modesta.
Mas o sol entra por todas as janelas.
E a alegria entra com ele.
Não tenho luxo.
Tenho vida.
Tenho alma.”
— Cora Coralina.
No filme Here – Aqui (2024), do diretor Robert Zemeckis, toda a narrativa se constrói a partir das vivências na sala de estar de uma família. Ao longo de décadas, acompanhamos a construção de laços, dilemas e as problemáticas triviais de uma família comum. O que quero destacar é como, ao longo da história, percebemos que um simples espaço pode ser ocupado, decorado e ressignificado a partir dos vínculos afetivos, sentidos simbólicos e diferentes fases da vida dos personagens.
Quando dizemos que a casa é o reflexo íntimo do morador, entendemos que ela não é estática. Diferente das salas de showroom, ela é viva. Afinal, na vida real, o vinho derrama no tapete, as crianças sujam as paredes e a cadeira esteticamente agradável nem sempre é a mais confortável para assistir ao noticiário do meio-dia.
Here é um filme sobre família — e sobre o quão sagradas são suas casas. O lar. A história viaja por gerações, capturando a experiência humana em sua forma mais pura.
Essa sensibilidade atravessa também o olhar do design de interiores, que precisa ir além da estética pronta e buscar entender como os espaços se moldam à vida real. Um bom projeto de interiores não deve apenas “decorar”, mas traduzir histórias, afetos e modos de habitar. É nesse lugar entre a memória e o cotidiano que os ambientes ganham alma — e deixam de ser cenário para se tornarem parte da narrativa.
(SONY PICTURES IMAGEM)
(SONY PICTURES IMAGEM)
(SONY PICTURES IMAGEM)
Somos mistura. Somos cor. Somos memória viva. Por que, então, nossas casas deveriam ser neutras, frias e "Pinterestáveis"? O maximalismo brasileiro não é só uma tendência estética — é uma declaração de identidade. E por falar em identidade, o tema da CASACOR 2024 foi "De Presente, O Agora", um lembrete sobre a importância de reconsiderar os espaços como possibilidade de cura, refúgio e raízes culturais que evocam a expressão emocional. Da edição 2024 do evento, podemos destacar:
Foto: Victor Eleuterio
O espaço da piscina projetado por Marina Campanhã na CASACOR Piauí 2024, intitulado “Boqueirão”, é uma homenagem sensível à ancestralidade e à paisagem do Parque Nacional Serra da Capivara. Inspirado nas formações rochosas esculpidas pelo tempo, o ambiente convida à contemplação da origem, a importância do começo de tudo. O projeto é uma representação poética da trajetória humana e celebra a ancestralidade do povo piauiense.
Foto: MCA Studio
O arquiteto Bruno Moraes, do BMA Studio, apresentou um ambiente que valoriza as raízes culturais brasileiras, integrando camadas históricas, contemporâneas e tecnológicas. Seu projeto destaca a importância das memórias afetivas e das tradições que formam a identidade do país
Foto: Denilson Machado/ MCA STUDIO
Segundo a arquiteta, "Este ambiente é uma celebração da minha essência e do legado que construí. Uma fusão entre o passado e o presente, entre o nostálgico e o contemporâneo". Percebemos o cuidado conceitual com elementos naturais e sustentáveis. O projeto conta com peças de restauração, que retomam a ideia de ancestralidade e memória.
Foto: Walter Dias
Com uma identidade bastante ousada, colorida e regional. A arquiteta traz paginações de pisos dos ladrilhos de Olinda, os tons terrosos, os arcos, as colunas, os detalhes geométricos e os muxarabis. Todos esses elementos reunidos trazem muito conforto estético e grandes memórias afetivas.
Foto: MCA Estúdio
Com muita afetividade, a arquiteta traz uma vibe meio "casa de vó". A presença de objetos herdados, como pratos antigos e bules, combinados com obras de arte contemporâneas, reforça o diálogo entre passado e presente.
Em tempos de casas cada vez mais parecidas, onde o algoritmo dita tendências e a estética se sobrepõe à essência, falar de decoração afetiva é quase um ato de resistência. É lembrar que morar vai além de habitar: é se reconhecer no espaço e permitir que cada cor, cada objeto, cada textura carregue um pedaço da sua história.
A cara viva e com "cara de casa", tem afeto. O maximalismo brasileiro nos mostra que o excesso pode ser identidade. A tendência clean girl nos lembra que o simples também pode ser bonito — desde que tenha alma. E os espaços da CASACOR 2024, com o tema “De Presente, o Agora”, escancararam que o tempo do morar é o tempo do sentir.
Se a casa é espelho, que ela reflita você.
Se é abrigo, que ela te guarde.
Se é palco, que ela conte sua narrativa — com cor, com memória, com verdade.
Aqui no Finestra, acreditamos que decoração é também linguagem. E toda linguagem carrega emoção.
Então, que tal olhar pra sua casa hoje com mais gentileza?
Mais do que perfeita, ela precisa ser sua.