Recentemente me perguntaram como crio os conteúdos compartilhados na Finestra.
É uma pergunta que não tem uma única resposta, mas que me fez refletir: talvez eu apenas ande pelo mundo prestando atenção nas cores que não sei o nome — e vá buscando os hiatos nas histórias contadas.
Dito isso, o texto de hoje nasce de um dia de tour arquitetônico, que me fez pensar sobre o poder do reconhecimento — ou melhor, sobre a ausência dele.
A Finestra é mais do que uma página sobre estética e beleza.
É sobre processos, memória e construção.
Foi nessa mesma linha que, durante uma exposição no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, uma fotografia me fez lembrar imediatamente de um show do Bad Bunny. Parece uma associação inusitada, eu sei — mas deixa que eu explico:
Bad Bunny, cantor porto-riquenho, recriou em seu show uma cena histórica: a famosa imagem dos imigrantes almoçando no topo de um arranha-céu em Nova York. A fotografia original, de 1932, mostra 11 operários sentados sobre uma viga de aço, sem qualquer proteção. Ela virou símbolo da coragem — e da precariedade — dos trabalhadores da construção civil daquele tempo.
A foto que vi no CCBB pertence a esse mesmo olhar de denúncia. Ela retrata a Vila Amaury, uma comunidade formada por famílias de operários que ajudaram a erguer Brasília. Enquanto a cidade-modelo era projetada para poucos, essa vila nascia à margem — entre barracos, ausências e improvisos. Anos depois, foi apagada do mapa, submersa pelas águas do Lago Paranoá.
Ver aquela imagem foi lembrar que, por trás de cada parede icônica, há suor, deslocamento, mãos e histórias. É repensar quem constrói, quem aparece, quem é esquecido.
Milhares de trabalhadores, em sua maioria migrantes nordestinos, foram os verdadeiros responsáveis por dar forma à nova capital. E ainda assim, raramente aparecem nos prédios oficiais
A Finestra existe também pra isso: Pra lembrar que olhar é também reconhecer.
Vila Amaury - Fotografia de Paulo Manhães de 1958
Passeando por Brasília, em meio às formas icônicas, aos monumentos que atraem olhares e câmeras, percebi que faltam menções visíveis às mãos que realmente ergueram a cidade.
Brasília é quase sempre apresentada como a obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Mas por trás das curvas modernistas e da monumentalidade, estiveram sobretudo os operários nordestinos: homens e mulheres que colocaram sua esperança, sua fé e seu suor em cada parede, cada fundação.
É estranho caminhar por uma cidade que foi feita por tantos, mas creditada a poucos.
Foi nesse incômodo que voltei a pensar no trabalho de artistas como Bad Bunny, que em suas músicas denuncia as ausências, as injustiças e os apagamentos provocados por estruturas de poder — como o próprio governo dos Estados Unidos em relação a Porto Rico.
Suas críticas não são apenas posicionamento político, mas um chamado para que a gente olhe para as estruturas e questione quem constrói, quem lucra e quem é esquecido.
Porque toda obra — seja uma capital, uma canção ou uma nação — carrega mãos, histórias e silenciamentos que precisam ser vistos e lembrados.
Quando Bad Bunny usa sua arte para criticar o governo dos Estados Unidos, ele não está apenas fazendo música — está colocando o dedo na ferida de um sistema que historicamente explora, silencia e invisibiliza povos como o porto-riquenho.
Suas críticas — diretas, viscerais e carregadas de indignação — nos convidam a olhar além do espetáculo e enxergar as mãos por trás das construções: quem sustenta, quem é explorado, quem é apagado.
Em tempos em que os discursos hegemônicos tentam maquiar desigualdades, é urgente pensar nas estruturas de poder e nos corpos que nelas são usados como base — sem reconhecimento, sem voz, sem retorno.
Bad Bunny nos convoca, com ritmo e resistência, a lembrar que arte também é denúncia. E que toda construção — seja um prédio, uma narrativa ou uma nação — tem mãos e histórias que precisam ser vistas.
Brasília nasceu de um risco no papel.
Modernista, utópica, branca, limpa — uma capital sonhada para ser símbolo do futuro.
Mas, por trás das curvas de Niemeyer e da precisão de Lúcio Costa, havia outro Brasil: o que carregava o peso, o que empilhava o tijolo, o que erguia a estrutura.
Brasília foi construída, em grande parte, por mãos nordestinas.
Gente que chegou em caminhões paus-de-arara, com a esperança de um trabalho digno e a promessa de um país novo. Mas esse novo não os incluiu.
Enquanto no Plano Piloto se erguiam palácios, espelhos d’água e eixos perfeitos, a cidade que abrigaria a mão de obra era empurrada para longe. Assim nasceu Ceilândia.
Uma cidade pensada não como lar, mas como contenção. Urbanismo de exclusão: ruas retas para facilitar o controle, distância calculada para manter a separação.
Ceilândia foi criada às pressas, em meio ao barro e à poeira, para tirar do centro os candangos que “incomodavam” o ideal de modernidade.
Na Finestra, falamos de morar como afeto, como cuidado, como expressão de quem somos. Mas como falar de lar sem lembrar de quem teve o seu negado?
Urbanismo é política. É escolha. É o que diz quem pode estar no centro e quem deve ser afastado dele. E é por isso que olhamos para Brasília com um olhar duplo: encantados com sua beleza arquitetônica, mas atentos ao que essa beleza escolheu apagar.
Assim como a casa não é só o que se vê. É também o que se esconde atrás do reboco; A cidade não é só o traço do arquiteto: é também o trajeto do trabalhador.
Falar de interiores, para nós, é também falar de história. Mas também precisamos falar das histórias que não cabem nas placas douradas nem nas homenagens oficiais. Aqui sempre falo em abrir janelas — para a beleza, sim! Mas também para novas perspectivas de se vê uma história.
Primeiros moradores da CEI (Campanha de Erradicação de Invasões) o que futuramente se tornou Ceilândia. Foto: Poder 360.
A construção de Brasília (1956–1960) é comumente atribuída aos traços modernistas de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Em muitos pontos turísticos fala-se que " Juscelino Kubitschek construiu brasília". Mas por trás da imagem oficial da cidade idealizada, existia uma outra Brasília — feita de poeira, improviso, desigualdade e resistência. Enquanto o Plano Piloto nascia com status de obra-prima, Ceilândia era planejada como afastamento. Há quem diga que a cidade satélite marcou uma espécie de apartheid de Brasília. Criada às pressas na década de 70, foi a forma encontrada para "tirar de vista" os operários. Urbanismo como controle: ruas largas, vigilância fácil, moradia precária. É a cidade da força de trabalho, mas também da exclusão espacial.
Buscando referências em Milton Santos, a cidade pode, de fato, ser vista como uma máquina de exclusão — um espaço de segregação, onde a concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos leva à marginalização de muitos.Para o autor, o espaço geográfico é, ao mesmo tempo, condicionado e condicionador. Nesse sentido, trata-se de uma instância social, produzida pelas relações de poder que o moldam continuamente. É nesse espaço que a lógica da dominação se reproduz, colocando os mais vulneráveis em condições de subalternidade e reforçando desigualdades históricas.
O traçado de Brasília, embora celebrado como modernista, reforça a separação entre centro e periferia. Os candangos, que ajudaram a construir o centro, foram realocados para as bordas. O Museu da Memória Candanga permanece à margem, quase esquecido. Em termos geográficos, o Museu dá continuidade ao apartheid, afinal, o mesmo está localizado fora do plano piloto: no Núcleo Bandeirante, próximo à BR-040.
Tá vendo aquele edifício, moço?
Eles ajudaram a levantar.
Provavelmente você já ouviu a música a que fiz referência: CIDADÃO. A música que foi gravada originalmente pelo cantor Zé Geraldo, em 1979, no disco Terceiro Mundo, se popularizou na voz de Zé Ramalho. A canção retrata a história de um trabalhador da construção civil que ajudou a construir a cidade, mas não tem acesso ao espaço que ajudou a criar. A história pode se confundir com a realidade de muitos operários nordestinos que ocuparam Brasília pra sua construção. Assim como na música, o “cidadão” fica do lado de fora do que ajudou a construir. Um lembrete de que a exclusão urbana não era acidente: era projeto.
Muitos vieram de longe, com pouco nas mãos e muito nas costas. Sonharam uma cidade que não era pra eles. São os candangos — os que deram forma ao concreto e foram deixados à margem dele.
O termo "candango" passou a ser usado para se referir aos trabalhadores que migraram, principalmente do Nordeste, para construir Brasília entre 1956 e 1960. Embora inicialmente o nome tivesse conotação pejorativa (vindo de gírias militares e africanas para designar pessoas "rudes" ou "desajustadas"), ele foi ressignificado ao longo do tempo. Hoje, “candango” é reconhecido como símbolo de força, luta e protagonismo popular na construção da capital federal.
Esses homens e mulheres vieram em busca de oportunidade, enfrentaram condições precárias de trabalho e moradia, e foram fundamentais para erguer os edifícios e monumentos que hoje representam a identidade de Brasília — mas, em grande parte, permaneceram à margem do reconhecimento histórico
Caminhão de operários passa próximo ao futuro prédio do Congresso Nacional, em 1959. (Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF.
O artista expõe, sem medo, as estruturas que calam, exploram e esquecem.
Vale assistir com atenção. Porque arte também é luta.
Você não conhece o artista ? Clique aqui em baixo.
Cada cidade guarda camadas. Há o que foi planejado — e o que foi apagado. Há o que é mostrado — e o que resiste nas frestas. O chão que a gente pisa carrega marcas de luta, exclusão, memória e sonho. Em Brasília, isso é visível e ao mesmo tempo oculto: enquanto se celebra a genialidade de traços modernistas, silencia-se quem realmente ergueu as paredes, carregou concreto, habitou as margens.
Mas toda história pode ser relida: ao lembrar das mãos invisibilizadas, das vilas submersas, das vozes que dançaram fora do projeto, a gente começa a ressignificar o espaço — e também o nosso papel nele.
Porque o que hoje é chão, um dia foi esperança.