A Bossa da Nossa Terra: A Força da Criatividade brasileira na Arquitetura e Design
Uma celebração ao design que nasce do clima, da cultura e da sabedoria popular.
Uma celebração ao design que nasce do clima, da cultura e da sabedoria popular.
“Minha terra tem palmeiras...” escreveu Gonçalves Dias, exilado em Coimbra, imaginando com saudade o Brasil distante. Mais de um século depois, Caetano Veloso, exilado em Londres, caminhava sozinho por ruas cinzentas, compondo versos suaves e carregados de melancolia tropical.
Entre o sabiá e o tropicalismo da mpb, entre o barroco e o concreto, o Brasil pulsa como memória e como desejo. Sempre transformando a saudade em criação. Porque aqui, onde se canta e se cria, tudo é feito com identidade, afeto e bossa.
Se para Gonçalves dia, a nossa terra tem primores que ele não encontrou por lá. Ouso dizer que também temos um design que é só nosso e cheio de bossa.
Aqui, onde canta o sabiá, também se desenha com identidade e com o olhar voltado tanto para a tradição quanto para o futuro. O Brasil produz com mãos criativas e pensamento inovador. É na mistura de culturas, nas cores da terra, na leveza dos materiais e na força das ideias que nasce um design autoral, reconhecido por sua autenticidade e beleza.
O Brasil sempre criou com o olhar atento para o que tem em volta, inspirados nas formas e na fauna, no calor e nos ventos que refrescam e acolhem. O jeitinho brasileiro já inspirou e inspira criações únicas.
Sempre adaptando à nossa diversidade, que é formada por climas e cenários diversos ao longo da imensidade geográfica que temos. A relação recíproca entre coisa e criador, mostra que temos uma relação íntima com o clima e com o corpo. Dessa simbiose nasceram soluções arquitetônicas tão nossas quanto o sotaque: o cobogó, o pau a pique, as diferentes formas de usar a rede, o brise e a releitura do muxarabi.
O cobogó, por exemplo, é uma invenção brasileira que deixa passar a luz e o vento, sem abrir mão da privacidade. Com ele, o sol desenha a casa.
O pau a pique, ancestral, mistura barro e madeira para erguer paredes que respiram.
O brise, quando bem usado, transforma fachadas em filtros poéticos de sombra.
O muxarabi, influência árabe tropicalizada por aqui, cria jogos de luz e leveza.
E a rede, entre um canto e outro da casa, ensina que descansar também é arquitetura.
Essas soluções não são apenas funcionais, são culturais. Carregam saberes populares, modos de vida e uma estética que nasce da necessidade. No design de interiores, resgatar esses elementos é mais do que um gesto estético. É uma escolha ética, afetiva e identitária. É fazer o espaço falar com a terra, com o corpo e com a memória. Na Finestra, acreditamos nesse design que vem de dentro — que traduz o Brasil em texturas, tramas e respiros.
Imagem: pinterest
Criado em Recife na década de 1920, o cobogó é uma invenção genuinamente brasileira. O nome vem da junção dos sobrenomes de seus idealizadores — Coimbra, Boeckmann e Góis — três engenheiros que buscavam uma solução simples e inteligente para ventilar os ambientes sem perder a privacidade.
Feito inicialmente em cimento, o cobogó logo ganhou versões em cerâmica, vidro e outros materiais, tornando-se um elemento arquitetônico versátil e expressivo. A Caixa d'água de Olinda, de Luiz Nunes, construída em 1936, é uma referência no emprego do cobogó em todas as suas fachadas criando uma textura uniforme e abstrata. O elemento permite a passagem da luz e do ar, criando jogos de sombra ao longo do dia e contribuindo para o conforto térmico dos espaços. Pode ter diferentes formas, tamanhos e texturas.
Lembrando rendas, ambos representam uma estética brasileira que valoriza a leveza, a ventilação, o calor do clima tropical e o cuidado nos detalhes. São funcionais e poéticos. Como a renda que deixa entrever o que cobre, o cobogó também filtra luz e calor com delicadeza.A iluminação é uma alinhada na dança de sombras que acontece ao longo do dia. Ambos contam histórias de um Brasil que respira beleza mesmo nos detalhes, onde o trançado das mãos vira arte, e a arquitetura ganha leveza e bossa.
Mais do que um recurso funcional, o cobogó se transformou em símbolo da arquitetura brasileira moderna, com destaque nas obras de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, e voltou com força ao design contemporâneo, trazendo ritmo, textura e identidade a interiores e fachadas. O arquiteto Lucio Costa teve forte influência nesse movimento modernista, disseminando o conceito do uso dos cobogós, valorizando seus benefícios e design em obras arquitetônicas.
Do calor de Recife às linhas modernistas de Brasília, o cobogó se impõe como símbolo da arquitetura brasileira. Mais que elemento construtivo, ele respira por meio do vazado: filtra luz, deixa passar o vento e desenha sombras que dançam nas paredes. Em Recife, nasceu como solução prática para o clima tropical; em Brasília, ganhou status de arte nas mãos de mestres como Lelé e Lucio Costa. Em cada cidade, o cobogó expressa um jeito brasileiro de habitar o espaço: leve, inteligente e cheio de bossa.
Cais do Sertão - Recife
Biblioteca Nacional de Brasília
Fonte da imagem: pinterest
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Na decoração, o cobogó pode ser usado para dividir ambientes de forma leve, criar painéis decorativos ou valorizar a iluminação natural. É um convite à convivência entre forma e função. Com seus desenhos vazados e ritmo geométrico, o cobogó transcende a arquitetura e conquista o mobiliário. Deixa de ser apenas parede para tornar-se presença: painel, divisória, base de aparador ou encosto de cadeira. Seu valor está não só na funcionalidade, mas na estética que imprime personalidade. É uma escultura útil, é arte que organiza o ambiente. Em cada peça, o cobogó reafirma sua vocação: unir beleza e inteligência construtiva com a leveza do design brasileiro.
Mesa de Centro Cobogó - Vazado, 2022
Mesa de jantar Cobogó (2008)
Nas mesas Cobogó, os irmãos Campana transformam um elemento típico da arquitetura brasileira em escultura funcional. O que antes compunha fachadas e muros, agora sustenta encontros .
Brise-soleil, ou simplesmente brise, é uma solução arquitetônica que nasceu na França, mas ganhou alma brasileira nas mãos de mestres como Lina Bo Bardi e Oscar Niemeyer. A palavra, que significa literalmente “quebra-sol”, descreve estruturas que protegem os interiores da incidência direta do sol, mas sem bloquear totalmente a luz ou a ventilação.
No Brasil, onde o clima quente e luminoso exige inteligência térmica, o brise se transformou em protagonista. Em concreto, madeira, alumínio ou cerâmica, ele desenha fachadas dinâmicas, criando sombras móveis e respiros visuais.
Além de seu papel funcional, o brise também carrega forte valor estético. Ele permite que edifícios e interiores dialoguem com o tempo, já que a luz muda ao longo do dia e projeta formas sobre pisos e paredes. Ele é como uma persiana de vento: dança com o sol, protege sem esconder, e veste a fachada com movimento. Ele não barra a luz, na verdade, ele controla sua entrada, quase como um compositor de destino que soa o tambor de todos os ritmos.
Quando o brise encontra o cobogó, o resultado é uma arquitetura que sente e responde. Um filtra a luz em movimento vertical, o outro desenha sombras em ritmos vazados. Juntos, criam cenários definidos pela luz e o vento, A combinação do espaço com as plantas, é um encontro da técnica com poesia e vida: o reflexo da bossa tropical.
No design de interiores, o uso de brises — ou elementos inspirados neles — aparece em divisórias, painéis, biombos e revestimentos que evocam leveza, ritmo e movimento. Uma escolha contemporânea que se apresenta como alternativa para um planeta cada vez mais instável climaticamente.
Foto: Plena Madeira
Foto: Forma Decor
Originalmente usado na arquitetura islâmica, o muxarabi (do árabe mashrabiya) chegou ao Brasil pelos caminhos da colonização portuguesa e foi, com o tempo, tropicalizado. Feito geralmente em madeira rendada, esse elemento funciona como uma tela vazada, permitindo a passagem do ar e da luz, ao mesmo tempo em que garante privacidade. Assim como o Cobogó, funciona com uma espécie de filtro entre dentro e fora.
No Brasil, o muxarabi ganhou vida própria. Foi adaptado ao clima quente e úmido e aparece em janelas, varandas, fachadas e divisórias, especialmente em casas coloniais, igrejas e, mais tarde, em projetos modernos que buscavam diálogo com a tradição.
Mais do que um ornamento, o muxarabi é um exemplo de como a arquitetura pode ser funcional e climática ao mesmo tempo. Ele cria sombras que dançam, suaviza o encontro com o sol e confere aos espaços uma atmosfera de intimidade e leveza.
No design de interiores contemporâneo, o muxarabi à brasileira inspira painéis, cobogós e biombos que resgatam o traço artesanal e o jogo de luz como linguagem. É uma herança que se reinventa e que nos lembra que, por aqui, até a sombra é cheia de desenho.
O muxarabi pode ser entendido como uma variação conceitual do cobogó, embora tenham origens e estruturas diferentes. Ambos são elementos vazados, usados para filtrar luz, permitir ventilação e garantir privacidade, mas seguem caminhos distintos.
No design contemporâneo, os dois elementos muitas vezes se encontram: vemos muxarabis reinterpretados em materiais modernos, e cobogós usados com padrões inspirados nos trançados tradicionais. Ambos expressam uma arquitetura que respeita o clima tropical e desenha com a luz.
Leve e cheia de memória afetiva — a cadeira espaguete é um clássico do design brasileiro. Surgida entre as décadas de 1960 e 1970, ela foi criada para ser prática, resistente e acessível, ganhando espaço nas varandas, quintais e calçadas de todo o país.
Dos lares mais simples à releituras contemporâneas, a versão genuinamente brasileira, está presente em todo território. Sendo um exemplar do que as novas gerações chamam de aesthetic brasileiro: é colorida, flexível e resistente, a cadeira de espaguete é quase um patrimônio afetivo. Presente em varandas, quintais e salas Brasil afora. Com seu trançado plástico e estrutura simples, ela senta memórias, serve cafezinhos e atravessa gerações com a leveza de quem nunca saiu de moda.
Seu nome vem dos fios de PVC colorido que se entrelaçam à estrutura metálica, lembrando fios de macarrão. A combinação resulta em uma cadeira que permite ventilação, acompanha o corpo com conforto e traz uma estética divertida que atravessa gerações.
Embora tenha inspirações internacionais, a versão brasileira da cadeira espaguete carrega um DNA próprio: adaptada ao clima tropical, feita com materiais simples e com forte presença no cotidiano.
Releituras contemporâneas da cadeira espaguete reforçam sua potência: seja em varandas modernas ou em projetos que dialogam com nossas memórias coletivas. Um exemplo de como o design brasileiro sabe transformar o simples em símbolo.
Muito antes da arquitetura moderna falar de sustentabilidade, o Brasil já construía com o que a natureza oferecia. O pau a pique — ou taipa de mão — é uma técnica ancestral, trazida pelos povos indígenas que utilizando materiais locais como madeira, palha e fibras naturais, desenvolveram técnicas artesanais que ainda hoje são valorizadas e reinterpretadas por designers contemporâneos. A sabedoria do pau a pique foi adaptada pelos colonizadores, e a combinação de barro e madeira se tornou uma verdadeira arte de construir com as mãos.
A estrutura é simples: varas de madeira (geralmente galhos finos ou bambus) são entrelaçadas em uma armação vertical, formando uma espécie de trançado. Sobre essa trama, aplica-se uma mistura de barro, palha, areia e água, moldando paredes que respiram. O resultado é uma construção com excelente desempenho térmico, que protege do calor e mantém o interior fresco, mesmo nos dias mais quentes.
Mais do que uma técnica, o pau a pique carrega um modo de habitar profundamente enraizado na cultura popular brasileira. Ele está presente em casas rurais, em vilarejos e também inspira obras contemporâneas que resgatam saberes tradicionais com um novo olhar.
Hoje, arquitetos e designers atentos ao valor da ancestralidade redescobrem o pau a pique como símbolo de resistência, simplicidade e conexão com a terra. Incorporá-lo ao design de interiores é trazer textura, história. Agora ele reaparece em espaços sofisticados, revelando que a elegância também pode nascer do rústico. Em vez de esconder a origem, o novo luxo celebra as raízes e identidade brasileira.
Do campo às galerias, o pau a pique ganha novo fôlego em grandes exposições de design. O que antes era visto apenas como técnica vernacular de sobrevivência, hoje é celebrado como manifestação de grande potência estética.
Tarcísio Dantas Arquitetura - Casa Quitéria. Projeto da CASACOR Pernambuco 2024.(Walter Dias)
Em um versão livre de Dourival Caymmi, diria que “O bossa da minha terra deixa a gente mole, quando se mostra, todo mundo bole…”
A criatividade brasileira é uma verdadeira fonte de inspiração - mas podemos ver que a minha para parafrasear músicas é bem carente - brincadeiras à parte, nossa criatividade é marcada pela fusão de tradição e inovação. Nossas criações, nas mais diversas formas e materiais, não apenas refletem a diversidade cultural do Brasil, mas também apontam para um futuro onde o design e a arquitetura se alinham com as necessidades e sonhos da sociedade. Ao explorar a beleza das formas, a sustentabilidade dos materiais e a originalidade dos projetos, o Brasil se destaca como um polo de inovação criativa. No Finestra, celebramos a riqueza dessas criações, sempre em busca de novas formas de interpretar o espaço e a arquitetura.
Nos detalhes da casa brasileira, há muito mais do que estética: há memória. Tudo carrega histórias de gerações que já passaram por aqui. Não é apenas sobre beleza; é sobre pertencimento e resistência das formas de morar.
Valorizar esses elementos no design de interiores é reconhecer que nosso território fala. Fala através das texturas rústicas, dos tons terrosos, das formas orgânicas. É um convite à arquitetura sensorial, que conecta passado e presente, campo e cidade, natureza e construção, sabedoria popular e técnica. Em um país como nosso, não é preciso inventar muito, pois a natureza já oferece cores, texturas e combinações perfeitas que podem ser reproduzidas com um olhar técnico e criativo. É sobre olhar pra dentro.
Na Finestra, olhamos para esses gestos do morar brasileiro e os traduzimos em escolhas conscientes e únicas para os espaços de hoje.